ESCOMBROS NOTÍVAGOS & NÃO REAPROVEITÁVEIS AGORA
14/05/2006
 


Eu dirigia quase à zero por hora. Como a minha vida, como a madrugada. Na avenida deserta e perdida de existência e toda cheia de retas sonhadas na infância. No assoalho do carro, garrafas de vinhos, todos doces, de quinta, batiam uma na outra, revelando o único som familiar. Consumidos na esperança de não perceber o tempo perdido nesta viagem. Absolutamente desnecessária e sofrida. Não tirava o pensamento do treisoitão, descansando solene necessário e esperto embaixo do banco. Cruzava com prédios e galpões abandonados de gentes, de ranços ou emoções. Semáforos apagados e caídos nos cruzamentos que não faziam nenhuma diferença. Nenhum pedestre desavisado se fazia esperar prum atropelamento solitário. Um atropelamento milagroso e redentor. Nenhum respiro, nenhum farol alto. Só carcaças desmanchadas por quadrilhas especializadas em comer restos de almas, rastros de emoção pública. Um rodie movie banal. Sem destino e direção. O que fazer? Talvez um café aberto perto da civilização ou, quem sabe, uma igreja 24 horas entupida de vampiros notívagos e carentes de sangue com poesia sem noção de estética moderna ou concreta. Já sei! Uma cadáver à quatro círios onde pudesse me ajoelhar e lamentar sua vida anônima e inútil, entregando flores em dias ensolarados pra pessoas tão anônimas quanto ele. Estirado ali, sem cravos ou carpideiras chorando em espanhol. Este carro não é meu! Não há gasolina suficiente e os pneus deixam marcas leucêmicas no asfalto. Talvez seja o caso de estacionar e procurar uma farmácia aberta de plantão, e descolar, com um balconista cego e risonho, uma cartela de comprimidos de 500 miligramas, que seja o suficiente pra dormir até a próxima encarnação. Um sono privado. Sem sonhos. Calado.

(JCF)

Nenhum comentário:

Postar um comentário